Professora da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ analisa as últimas ações de juízes e procuradores no sentido de criminalizar os movimentos sociais e sindical e atacar direitos trabalhistas.
Luciana Boiteux: Judiciário reforça ataque aos direitos sociais e trabalhistas
Nos últimos meses, tanto o Executivo e quanto o Legislativo intensificaram as ações que visam acabar com uma série de direitos sociais e trabalhistas, garantidos na Constituição Federal após muita luta dos trabalhadores. Não obstante a ação desses dois poderes, a ofensiva conservadora e de cunho neoliberal ganha força também no Judiciário. Em entrevista ao InformANDES, a professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux, analisa as últimas ações de juízes e procuradores no sentido de criminalizar os movimentos sociais e sindical e atacar direitos trabalhistas. Confira. (Leia aqui a entrevista em pdf no InformANDES).
Temos visto, recentemente, uma ascensão da criminalização dos movimentos, reforçada por decisões do Judiciário, em especial o Ministério Público Federal (MPF) e o Supremo Tribunal Federal (STF), como o caso da intimação dos dirigentes do Sindicato dos Servidores do Colégio Pedro II (Sindscope), devido a cartazes com os dizeres Fora Temer afixados nos murais do sindicato no Colégio Pedro II, do Reitor da UFRJ no Rio, Roberto Leher, intimado a depor devido a um evento em defesa da democracia realizado pela comunidade academia, ou a decisão de um juiz do Distrito Federal que orientou o uso de técnicas de tortura para forçar a desocupação de uma escola. Como você avalia isso?
Luciana Boiteux: O campo jurídico e, mais especificamente, o Judiciário, não é neutro, apesar de seu discurso de suposta “neutralidade” e “justiça”. O que devemos perguntar é “Justiça para quem?”. Nesse sentido, compreende-se recentes decisões dos tribunais e STF, assim como de alguns representantes do MPF na chancela da repressão a sindicalistas, professores e trabalhadores em geral como ações concretas alinhadas à manutenção da ordem hegemônica, em defesa da classe dominante, na qual estão inseridas as elites do judiciário. Explica-se, assim, a contradição aparente de um tribunal como o STF, que admite o corte de ponto de grevistas servidores públicos embora eles próprios, de forma corporativa, pressionem por aumento de seus pró- prios salários e sejam os funcionário públicos mais bem remunerados no Brasil. Em relação à questão do Fora Temer, certamente os tribunais e juízes das instâncias inferiores foram influenciados pela decisão do STF, que legitimou o impeachment, o que certamente incentivou iniciativas individuais de promotores e juízes em assumir-se, inclusive juridicamente, como defensores de Temer no poder, portanto, rejeitando e criminalizando ações que tentem contestar a ordem estabelecida, o que é a lógica tradicional do Judiciário. Nesse sentido, os concursos públicos e as faculdades de Direito atuam de forma eficaz reproduzindo essa lógica da obediência e de tradicional defesa do ‘status quo’ por parte do Judiciário, ao selecionar e formar operadores do Direito conservador, supostamente “técnicos” e neutros, que aplicam a “Justiça”.
Assim como vemos em demais setores da sociedade, podemos dizer que há também uma ascensão do conservadorismo dentro do Judiciário?
LB: O Judiciário sempre foi conservador, sempre esteve alinhado na defesa dos interesses das classes dominantes. O que ocorreu nos últimos anos foi a ampliação do chamado ativismo judicial, ou seja, um diferente papel que passou a ser exercido por esse poder sobre os demais poderes, rompendo, de forma irreversível, o chamado “equilíbrio entre os poderes”, na minha opinião. O Judiciário hoje não só decide conflitos, ou interpreta leis, mas legisla e define políticas públicas, a pretexto de aplicar a Constituição. Nesse papel ampliado exercido pelos tribunais, no entanto, surge um problema, quem fiscaliza ou controla o STF, cúpula máxima do Judiciário, de seus próprios abusos? Ninguém. Presume-se que os juízes estejam sempre certos e que as eventuais revisões de suas decisões sejam feitas por próprios pares, nos tribunais, o problema é que o poder por eles exercido é muito grande, e os controles são pouco eficazes, sempre muito condicionados por indicações e pressões políticas. São juízes concursados, vitalícios, em tese para garantir sua independência, mas estes são muito pouco fiscalizados por seus atos, a exceção da atuação do Conselho Nacional de Justiça, que tem atuado de forma restrita, no meu entender. O Judiciário é essencial para a democracia, mas estamos num momento muito difícil, no qual, no geral, o mesmo não tem atuado a serviço da democracia, no sentido da maioria da população que é composta por trabalhadores, nem na defesa dos direitos das minorias, em pautas como direitos dos presos, o que deveria ser essencial a um regime democrático.
Qual a relação entre essas decisões e o acirramento dos ataques aos direitos sociais e dos trabalhadores por parte do Executivo e Legislativo? O Judiciário, mais específico o STF, tem tomado para si a deliberação e regramento de questões relativas aos direitos dos trabalhadores sobre as quais o Legislativo ainda não conseguiu deliberar, seja por uma priorização de outras pautas, seja pela pressão dos movimentos dos trabalhadores, como o direito de greve no serviço público e a terceirização. O que explica essa postura do judiciário?
LB: As altas cúpulas dos tribunais chancelam os ataques aos direitos sociais e dos trabalhadores justo por estarem alinhados às classes dominantes. Assim, atuam no sentido de dar interpretações aparentemente “constitucionais” a essa retirada de direitos, mas materialmente contrária a essas conquistas. Tais atuações representam o oposto do espírito e do histórico de nossa Constituição, que está sendo desfigurada atualmente. Poderia apontar como exceção os Juízes do trabalho, que ainda resistem bravamente, mas que são muitas vezes desautorizados em suas decisões pelos tribunais superiores alinhados a outros interesses políticos opostos aos dos trabalhadores. Justamente pela ampliação do ativismo judicial, hoje é mais rápido muitas vezes mudar as leis (ou sua interpretação) pelas vias judiciais, pois o poder Legislativo tem seus ritos e pressões políticas que tornam, dependendo da conjuntura, tais mudanças mais lentas. A terceirização é um exemplo. A expectativa é a chancela do STF a essa forma de contratação que viola tantos direitos, mas que atende aos interesses do Capital e das grandes corporações, e que oprime de forma severa trabalhadores pobres, desorganizados e ainda mais vulneráveis do que os demais.
Diante dessas decisões vindas do órgão máximo do judiciário como os trabalhadores podem reagir?
LB: O Judiciário é um campo maioritariamente conservador, mas não por isso deixa de ter sua disputa interna. A organização dos trabalhadores na resistência e na conscientização da população de tais retrocessos e na defesa dos direitos sociais tão arduamente formalizados na Constituição de 1988 deve ser cotidiana, tendo como aliados juízes e juristas críticos e progressistas. A reação tem que ser política, assim como política tem sido a atuação do STF em várias pautas recentes. Compreender que a Justiça não é neutra nem justa é um passo importante para avançar nessa luta, e também que temos que entrar nessa disputa, inclusive jurídica, na busca de uma sociedade mais justa e igualitária, na resistência ao conservadorismo e à retirada de direitos, para evitar ainda mais retrocessos que já podem ser vistos no horizonte, tal como a PEC 241 [atual PEC 55] e outros ataques.
Fonte: InformANDES.