Não à adesão do CEFET-MG à contrarreforma do ensino médio
A Assembleia Docente realizada no dia 2 de março de 2023 aprovou por unanimidade, após ampla discussão, denunciar a adesão do CEFET-MG à Contrarreforma do Ensino Médio (Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017) por meio do processo de revisão curricular em curso, iniciativa da Diretoria de Educação Profissional e Tecnológica (DEPT), com anuência do Conselho de Educação Profissional e Tecnológica (CEPT), bem como analisar os impactos de sua adoção na Instituição.
A origem desse processo de revisão curricular remonta à 4ª reunião ordinária do CEPT, realizada no dia 12 de maio de 2022, quando o Conselho aprovou a proposta do seu presidente, Sérgio Gomide (diretor da EPT), de constituir um Grupo de Trabalho para “examinar a Reforma do Ensino Médio e apresentar ao Pleno as possíveis implicações dessa reforma para os cursos da Educação Profissional Técnica de Nível Médio (EPTNM) ofertados pelo CEFET-MG e propor ações para uma posição institucional em relação ao tema.” (Ata da 4ª reunião ordinária do CEPT, realizada no dia 12 de maio de 2022) [1].
Entretanto, antes mesmo que esse GT pudesse ser constituído e ter apresentado um relato dos seus trabalhos no intuito de “propor ações para uma posição institucional em relação ao tema”, o presidente do CEPT, na 7ª reunião ordinária do CEPT, de 11 de agosto 2022, substitui sua proposta inicial pela formação de Grupos de Trabalho cuja atribuição consiste em realizar “a revisão curricular, a integração de saberes e as implicações sobre os cursos ofertados pelo CEFET-MG, no âmbito da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, observando o contexto da Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.”(Ata da 7ª reunião ordinária do CEPT, de 11 de agosto 2022. Grifo nosso) [2].
A partir da aprovação dessa proposta pelo Conselho, foi aprovado, na 3ª Reunião extraordinária do CEPT, de 29 de setembro de 2022 [3], um conjunto de “Diretrizes Gerais para a Revisão Curricular dos Cursos da EPTNM do CEFET-MG” (Deliberação CEPT-14/2022, de 30 de setembro de 2022) [4], proposto por uma comissão de membros desse Conselho. Posteriormente, foram constituídos Grupos de Trabalho para cada disciplina da formação geral e da formação técnica para conduzir essa revisão. O cronograma desse processo foi deflagrado no dia 6 de fevereiro de 2023, com um curso para os membros dos GT, e prevê seu término no dia 31 de maio de 2023, com a apresentação dos seus resultados.
Em seus discursos de apresentação e defesa da revisão curricular, nos dias 5 de outubro de 2022 [5] e 6 de fevereiro de 2023, o diretor da EPT afirmou categoricamente que não se trata, de modo algum, de uma adesão à Contrarreforma. Os principais argumentos apresentados pelo diretor a pretexto de desvincular a revisão da Contrarreforma foram os seguintes: o fato de que não ofertaríamos, em seu entendimento, “ensino médio regular”, o que desobrigaria o CEFET-MG da aplicação dessa Lei; e que a Instituição tem a prerrogativa de recusar a Contrarreforma com base em sua “grande autonomia didático-pedagógica”. Na abertura do curso para os membros dos GT, no dia 6 de fevereiro, declarou ainda que a revisão curricular seria um “gesto de resistência”.
Para evidenciar os vínculos dessa revisão curricular com a Contrarreforma do Ensino Médio, basta analisar o conteúdo da primeira diretriz das “Diretrizes Gerais para a Revisão Curricular dos Cursos da EPTNM do CEFET-MG”:
“1. Revisar, até o fim do ano letivo de 2022, os programas das disciplinas da formação geral e da formação técnica, considerando, à luz das especificidades pedagógicas das áreas de conhecimento, o que preveem a Base Nacional Comum Curricular (Lei nº 13.415/2017), as novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica (Resolução CNE/CP nº 01/2021) e o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos (Resolução CNE/CEB nº 2/2020).” (Grifos nossos)
Os documentos sublinhados acima constituem precisamente o conjunto dos marcos regulatórios que implementam a Contrarreforma na educação pública: a Lei nº. 13.415/2017 e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC); as novas DCN de 2021; e o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos de 2020. Trata-se, portanto, de uma revisão que, ao adotar esses dispositivos legais como referência, se submete e adere explicitamente à Contrarreforma. Assim, o teor dos discursos em defesa da revisão curricular proferidos pelo diretor da EPT expressa uma profunda contradição, pois ou bem se adere a um projeto ou bem se lhe oferece resistência, dada a impossibilidade de se aderir e resistir, simultaneamente, a um mesmo projeto, neste caso, a Contrarreforma.
Ainda mais grave é o fato de que as Diretrizes Gerais da revisão curricular alinham-se aos propósitos da concepção pedagógica da Contrarreforma, comprometidos com a desregulamentação e a precarização do trabalho em consonância com a dinâmica volátil do capital financeiro, por meio de uma formação superficial, aligeirada e alienante de trabalhadores socializados para aceitar como natural o desempenho de múltiplas tarefas em um mercado flexibilizado. Esse fato pode ser constatado, sobretudo, pela análise das diretrizes sexta e oitava, nas quais se lê:
“6. Estabelecer, a partir da definição do perfil do egresso, os conhecimentos necessários para composição dos programas disciplinares e eventual reorganização dos componentes curriculares e distribuição de carga horária das disciplinas, de modo a garantir a complementaridade dos conhecimentos e evitar sobreposições e repetições de conteúdos.” (Grifos nossos)
“8. Estabelecer práticas avaliativas formativas, processuais, integradas e interdisciplinares, buscando a superação do modelo conteudista fragmentado.” (Grifos nossos)
Ambas as diretrizes tornam patente a possibilidade de redução de conteúdos previstos nos programas, de disciplinas na matriz curricular e de suas cargas horárias, pois afirmam que um resultado “eventual” dessa revisão será a “reorganização dos componentes curriculares”, a alteração de “distribuição de carga horária das disciplinas” e “a superação do modelo conteudista fragmentado” adotado no CEFET-MG, sob a alegação de que isso garantiria “complementaridade dos conhecimentos” e evitaria “sobreposições e repetições de conteúdos”. O conjunto dessas iniciativas converge para a elaboração de um currículo enxuto e flexível, nos moldes do que requer a Contrarreforma, por exemplo, por meio do § 5º do Art. 35-A da Lei nº 13.415/2017, que institui o limite de 1800 horas para os componentes curriculares da BNCC. Nesse sentido, as ideias de “integração” e “interdisciplinaridade”, ambas sem definição nas Diretrizes Gerais, parecem ser meros pretextos para endossar a flexibilização curricular preconizada pela Contrarreforma.
Ademais, não se explicita o que viria a ser esse “modelo conteudista” em vigência no CEFET-MG nem em que consistem sua crítica e as razões pelas quais deveria ser eventualmente “superado”, tampouco se explicita em que consiste uma suposta “fragmentação” desse modelo. Os pressupostos que justificariam a necessidade de se evitar “sobreposições e repetições de conteúdos” e superar um “modelo conteudista fragmentado” são também pressupostos da Contrarreforma, quais sejam: as ideias de que o currículo é rígido, não integrado, anacrônico, desinteressante, inflado, pois se compõe de um número excessivo de disciplinas e conteúdos, sobrecarregando os estudantes.
No entanto, o que fica suficientemente explícito são os impactos decorrentes dessa revisão curricular, que serão, pelo que vimos até então, os mesmos da Contrarreforma: a flexibilização curricular que implica a redução dos conteúdos ofertados durante o percurso formativo, o rebaixamento da formação por meio da inconsistência epistemológica, do esvaziamento da relação com o conhecimento, da substituição dos vínculos entre teoria e prática pelo imediatismo e pragmatismo mercadológico, do predomínio das noções do senso comum sobre o conhecimento fundado nas Ciências, nas Artes e na Filosofia. A secundarização dos conteúdos e a organização curricular enxuta e flexível, forjada no interesse do mercado, são a contraface da integração curricular que pressupõe uma Educação Profissional densa com base nos conhecimentos sócio-históricos, científicos e tecnológicos, conectada com o mundo do trabalho. A integração curricular requer a articulação entre teoria e prática, entre a parte e o todo, entre conhecimento científico e as práticas sociais, contribuindo, por meio do processo formativo, para a superação do projeto social hegemônico. Este é o modelo que o CEFET-MG construiu ao articular a formação profissional com as disciplinas do Ensino Médio, sem instrumentalizá-las no intuito de produzir um ensino tecnicista e estritamente profissionalizante.
A décima diretriz é igualmente grave:
“10. Garantir a todos os estudantes o pleno acesso ao currículo, promovendo a permanência na instituição e o êxito em sua trajetória acadêmica, de forma a favorecer a conquista e o exercício de sua autonomia, com respeito à inclusão e à diversidade social, étnico-racial e de gênero.” (Grifos nossos)
Essa diretriz parte dos mesmos pressupostos expressos na Contrarreforma. O primeiro deles é o de que, ao se flexibilizar o currículo, “promove-se” permanência e êxito escolar. Trata-se de uma solução simplista e redutora, pois a permanência e o êxito estudantil não dependem de questões estritamente pedagógicas, mas envolvem também questões sociais e econômicas que, no mais das vezes, transcendem a esfera da atuação escolar. Certamente, os problemas relativos a retenção e evasão escolar não se resolvem com flexibilização e redução curriculares, mas com políticas sólidas de assistência estudantil, investimentos públicos robustos em melhores condições de trabalho, melhoria da infraestrutura institucional e compromisso com padrão elevado da qualidade de ensino.
Outro pressuposto é o de que os estudantes oriundos das classes subalternizadas seriam incapazes de assimilar conhecimentos mais elaborados e complexos, necessitando, assim, de um currículo flexível, “mais atrativo”. Essa ideia reforça a distribuição desigual do conhecimento, ao não lhes assegurar, por meio dessa estrutura curricular, o domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que marcam o processo do trabalho moderno e o acesso aos conteúdos mais sofisticados dos saberes mais complexos.
Sem dúvida, o conjunto dos pressupostos examinados até aqui coincidem com as justificativas dadas na origem da Contrarreforma. De fato, a iniciativa de colocar em tramitação a Contrarreforma do Ensino Médio teve origem em 2012, quando foi constituída, na Câmara dos Deputados, por solicitação do deputado federal Reginaldo Lopes, do PT de Minas Gerais, uma Comissão Especial com o objetivo de desenvolver estudos e elaborar proposições para a reformulação do Ensino Médio na educação nacional. As principais justificativas apresentadas para a instalação da comissão foram as seguintes: a necessidade de buscar soluções para os problemas de retenção e evasão escolar supostamente decorrentes de uma organização curricular extenuante, superficial e rígida que tornaria o Ensino Médio desestimulante para o estudante; e a urgência de se viabilizar uma nova organização curricular de caráter flexível, para atender à demanda dos diversos projetos de vida dos alunos.
As consequências catastróficas da adoção desse projeto neoliberal de educação já se expressam nas redes estaduais e municipais do ensino público, mediante a introdução de componentes curriculares como “O que rola por aí”, “RPG”, “Brigadeiro caseiro”, “Mundo Pets S.A.” e “Arte de morar”, com efeitos análogos aos decorrentes da adoção da “Escola Plural” na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte no final da década de 1990. Proposta com o mesmo pressuposto da Contrarreforma de que a redução dos índices de retenção e evasão escolar ocorrem mediante flexibilização curricular e progressão continuada (“progressão contínua”, nos termos do Art. 45 das novas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica, aprovadas pela Resolução CNE/CP nº 01/2021), a “Escola Plural” teve como impactos concretos a aprovação automática dos estudantes ao término das séries e uma formação superficializada e aligeirada, atendendo aos interesses empresariais de desinvestimento e precarização da educação pública.
Depreende-se dessas análises, em primeiro lugar, que não há nenhum elemento nas “Diretrizes Gerais” da revisão que ateste qualquer iniciativa de resistência institucional à Contrarreforma; pelo contrário, além da primeira diretriz, a sexta, a oitava e a décima diretrizes revelam, nitidamente, uma profunda identidade da revisão curricular com a concepção expressa pelas disposições normativas e pelos pressupostos da Contrarreforma. Em segundo lugar, a revisão curricular parece ser uma adequação ao disposto no § 3º do Art. 36 da Lei nº 13.415/2017: “A critério dos sistemas de ensino, poderá ser composto itinerário formativo integrado, que se traduz na composição de componentes curriculares da Base Nacional Comum Curricular – BNCC e dos itinerários formativos, considerando os incisos I a V do caput.” (Grifos nossos).
Outro aspecto fundamental da revisão curricular que requer considerações críticas é o seu cronograma: por que realizar um trabalho de tal magnitude e de grande impacto em apenas quatro meses (6 de fevereiro a 31 de maio de 2023)? Seria por estar subordinado ao término da atual gestão da Direção-Geral do CEFET-MG em outubro de 2023? A intervenção da Coordenadora de Avaliação e Regulação da EPTNM da DEPT, Natália Valadares Lima, no 1º Ciclo de Formação Continuada em Educação [6], transmitido no dia 27 de fevereiro de 2023, parece indicar essa possibilidade. Não se pode sujeitar uma proposta dessa natureza à temporalidade do encerramento de uma gestão, e, com mais razão, por ser o ano em que será deflagrado o processo eleitoral para Diretor-Geral do CEFET-MG.
Ademais, esse cronograma curto aborta o necessário aprofundamento da discussão sobre as concepções educacionais que deveriam balizar essa revisão. A temporalidade de aprovação da Contrarreforma impediu o debate a seu respeito, da mesma forma antidemocrática, quando foi implementada por Michel Temer, pela Medida Provisória nº 746, em 22 de setembro de 2016. Além disso, importa questionarmos por que deflagrar um processo de revisão curricular referenciado na Contrarreforma quando há discussões e mobilizações sociais em âmbito nacional pela sua revogação e nas vésperas da elaboração de um novo Plano Nacional de Educação (PNE), cuja vigência se encerrará em 2024, e que poderá ocasionar transformações significativas nas políticas educacionais relativas à EPTNM. Esses questionamentos adquirem ainda mais consistência ao se verificar que a revisão de programas de disciplinas e de Projetos Pedagógicos de Cursos é prática rotineira no âmbito do CEPT.
À vista do exposto, constata-se que a revisão curricular conduzirá necessariamente ao desmonte do modelo educacional vigente no CEFET-MG, pois romperá com a concepção de Ensino Médio Integrado adotada pela Instituição, cujo princípio educativo é o trabalho. Ao qualificar a organização curricular da EPTNM como “conteudista” e “fragmentada”, há um desmerecimento da concepção que alicerça a docência nesse nível de ensino, compromissada com a função social da Instituição. Essa concepção tem assegurado aos estudantes egressos uma formação de excelência que lhes propicia as condições para escolherem seguir os estudos em nível superior, disputando vagas nas melhores universidades brasileiras em pé de igualdade com estudantes das melhores escolas públicas e privadas do país, ou ingressar, de forma qualificada, no mercado de trabalho. Assim, a revisão curricular implica a desvalorização do trabalho docente, afronta e desmonta o modelo educacional que permitiu ao CEFET-MG conquistar a condição de um padrão de excelência socialmente reconhecido e, consequentemente, desvincula a Instituição da sua função social, promovendo a distribuição desigual do conhecimento e aprofundando, desse modo, a dualidade estrutural presente no sistema educacional brasileiro.
No âmbito nacional, a resistência requer a luta pela revogação da Contrarreforma, com a organização de uma frente de mobilização envolvendo docentes, técnicos administrativos e estudantes. Pois a Contrarreforma significa um crime de lesa-sociedade, e o seu caráter lesivo se evidencia na brutal expropriação do direito dos estudantes à educação de qualidade em consonância com os fundamentos da pedagogia histórico-crítica. Concretamente, a Lei n.º 13.415/2017 impôs uma pedagogia opressiva por meio de um currículo flexibilizado. Para mais, inviabiliza a compreensão das contradições sociais e do processo de construção da emancipação humana ao imprimir uma noção a-histórica e fragmentada da vida social na qual os processos coletivos de produção da vida material são deslocados para a esfera privada. No âmbito do CEFET-MG, a resistência à Contrarreforma requer a inserção dos docentes na luta sindical pela sua revogação e pela anulação imediata da Deliberação CEPT-14/2022, de 30 de setembro de 2022, que institui o processo de “Revisão Curricular dos Cursos da EPTNM” na Instituição, bem como de todos os demais atos normativos que lhe são associados.
[1] https://www.dept.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/80/2022/06/ATA_4-REUNIAO-ORDINARIA_12Maio22_APROVADA.pdf [2] https://www.dept.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/80/2022/09/ATA_7-REUNIAO-ORDINARIA_11Ago2022.pdf [3] https://www.dept.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/80/2022/10/ATA_3-REUNIAO-EXTRAORDINARIA_29092022.pdf [4] https://www.cefetmg.br/wp-content/uploads/2022/09/delibera%C3%A7%C3%A3o_correta.pdf [5] https://www.youtube.com/watch?v=IQUxpwMk3xQ [6] https://www.youtube.com/watch?v=KptsMUA3bKk&t=4215sSINDCEFET-MG, 24/03/2023.